Deformação e franqueza

Por Michel Laub

Publicado no livro
Imagens da literatura.

“O inventor da arte fotográfica é o inventor da mais desumana de todas as artes. A ele devemos a definitiva deformação da natureza e do ser humano que nela vive, reduzidos à careta perversa de um e de outro”.

A fala é do narrador de Extinção, romance satírico do ficcionista e dramaturgo austríaco Thomas Benhard (1930-1989), e talvez não seja a ideal para o prefácio de um livro de fotografia. Mas vale lembrar dela por dois motivos. O primeiro é que Bernhard é um dos autores preferidos de Renato Parada, dado importante num trabalho cujo objeto é a imagem de quem escreve: há algo de sobreposto, de ironia sobre a (auto) ironia, na operação de retratar o metiê literário – já que seus integrantes também são deformadores por excelência.

O segundo motivo é que, transformado em ética do dia-a-dia, esse olhar dúbio sobre a própria atividade acaba influenciando um método. Quem já foi fotografado profissionalmente sabe do que estou falando. Existe uma influência da conversa, da condução afetiva durante as pequenas e grandes negociações de uma sessão de retratos, na forma como acabamos definidos pela imagem – como a superfície plana dela reproduz a dimensão oceânica da nossa empáfia, ou insegurança, ou de qualquer vulnerabilidade do ego diante do que não se pode controlar no olhar dos outros.

No caso de Parada, o processo nunca passa por qualquer tipo de imposição, muito menos de confronto. Tendo a sorte de conhecê-lo há muitos anos, atribuo esse modo de trabalhar à sua personalidade também irônica, baseada num humor muito particular – uma mistura de fatalismo budista e falsa ingenuidade típica do folclore do interior de São Paulo. Quero crer que um pouco dessa vibração apareça em sua obra: nada nela se aproxima dos clichês pirotécnicos de certa fotografia artística, com personagens vestindo fantasias ou imersos em ambientes exóticos. Aqui, a interferência na cena jamais tem como norte o elogio em cima de efeitos cômicos ou dramáticos imediatistas.

Se pudesse definir o que marca o resultado dessa produção, que já soma uma década em editoras e na imprensa, diria que nela o conceito de pose pega uma espécie de atalho. Em vez de dar longas voltas formais para tentar chegar a uma essência humana – as mentiras de luz, enquadramento, figurino e composição que podem traduzir a verdade individual diante das lentes –, Parada aposta na franqueza da imagem, na presença a mais desarmada possível de cada personagem seu. Claro que é uma utopia, porque há um componente artificial em qualquer retrato. Mas a tentativa já é uma linguagem em si, o registro de como a ética influi na estética. Deixar escritoras e escritores à vontade com aquilo que são, ou que podem ser segundo o melhor palpite que temos a respeito, ajuda o resultado a um só tempo despojado e rigoroso que vemos nas páginas a seguir.