O mundo que desaparece de vista

Publicado originalmente na revista do Centro da Cultura Judaica.

Antes de meu pai morrer de câncer, nossa família lutou uma batalha em que inimigo, estratégia e os conceitos de vitória e derrota fogem ao senso comum.

“O câncer não é um campo de concentração, mas partilha com ele a característica da aniquilação: nega a possibilidade de vida fora e além de si mesmo; engloba toda a vida. A rotina diária de um paciente torna-se tão intensamente dedicada à sua doença que o mundo desaparece de vista.” A analogia é de Siddhartha Mukherjee, oncologista e autor do livro O Imperador de Todos os Males, uma biografia médica, histórica, política e social da doença que está entre nós desde o registro de seu primeiro caso, há mais de 4 mil anos.

Meu pai foi transferido para esse campo quando descobriu que estava com câncer de pulmão metastático. Até então ele era um homem de sucesso, bonito e saudável. “Você está com câncer”, ele me disse que repetia sozinho para sua própria imagem no espelho do banheiro, numa tentativa de digerir a nova realidade.

Uma das primeiras lutas contra uma doença pode ter como alvo o seu estigma social. Um problema de enfermidades cujas causas e cura seguem misteriosas para a ciência é a quantidade de pensamentos metafóricos que se alojam nela, adverte Susan Sontag em seu ensaio Doença como metáfora. Aconteceu com a tuberculose, associada aos excessos do romantismo, e com a AIDS, que chegou a ser definida como “peste gay”.  Com o câncer não é diferente. Ou seja, um paciente não é alguém apenas que sofre de uma condição biológica. Há um aspecto vergonhoso no processo, que sugere punição para os infelizes, amargurados, frustrados, incapazes de compartilhar suas angústias, além dos que não cuidaram suficientemente de sua saúde. Algo que se torna socialmente contagioso por isso e outros motivos. Se antes as pessoas sentiam satisfação de cumprimentarem meu pai, agora elas sentiam constrangimento. Se antes elas lidavam com sua imagem de sucesso, agora lidavam com uma sentença de morte.

Todos nós temos dupla cidadania, diz Sontag no mesmo ensaio. Uma para o reino dos saudáveis e outra para o dos doentes. Embora preferimos usar apenas o passaporte bom, inevitavelmente teremos que nos identificar com os cidadãos desse outro lugar. É no embate entre esses dois mundos que outra batalha solitária e claustrofóbica se inicia. Não há espaço para o doente de câncer ter pensamentos negativos. Nem para dividi-los com alguém. Pois é o pensamento positivo, a força de vontade, é querer viver que irá curar a pessoa. Se há uma desistência, uma falha nessa postura, a doença avança. A guerra para fazer parte das facilidades do mundo dos saudáveis é solitária e desconexa. Um lugar onde só se ouve a cobrança de “Não desanime, vai dar tudo certo, tenha fé!” enquanto tudo só piora e fica mais difícil.

Vi meu pai chorando apenas uma vez. Um choro parecido com o de um bebê, profundo, intenso, carregado de um saudosimo dos tempos em que tudo estava bem. Muito triste, mas era como abrir as comportas de uma represa. É uma benção podermos chorar. As tensões se aliviam, o espírito acalma, deixando um novo rastro de sabedoria para aceitar a realidade.

Toda confusão e sofrimento do mundo surge das melhores intenções de cada mundo particular, e da (in)capacidade de cada um estabelecer uma comunicação verdadeira com o outro. Se a morte é uma verdade insuportável, faz sentido a tentativa de escondê-la a qualquer custo com a intenção de evitar o sofrimento excessivo e sem sentido rumo ao inevitável. Isso é amor. Mas há outros casos. Talvez a verdade insuportável se mostre de outra maneira “para aqueles extraordinariamente esclarecidos e inteligentes”, como diz Sontag. A tensão é máxima. A linha é tão sutil. O campo é minado.  Um passo errado e uma explosão com consequências desconhecidas pode acontecer.

Em uma tarde ensolarada, sem energia para sair da cama, meu pai apertou o Pikachu de brinquedo cujo barulho chamava quem estivesse na casa. Entrei no quarto e ele carinhosamente pediu para me sentar na cama ao lado dele. “Você está escondendo alguma coisa de mim? Se estiver escondendo, quero que diga tudo, não esconda nada.” E comportas da minha represa há muito tempo em seu limite foram abertas. E para todos da nossa família. E com isso a sensação de que agora, depois de tantos meses, começaríamos a sofrer juntos. Não mais sozinhos.

Dizer a verdade insuportável para meu pai, ao invés de lhe tirar o chão, deu um novo chão para ele continuar na guerra, com nova armas, podendo conceber e planejar novos conceitos de vitória. Agora ele sentia que podia confiar na gente, nada estava sendo escondido e, apesar de ser triste, agora havia um senso de apreciação de sua parte. Como se agora lhe fosse concedida a oportunidade de concluir sua história antes de partir.

A despedida é um dos momentos mais profundos nos relacionamentos. A perspectiva de que as coisas não são para sempre é surpreendentemente libertadora. Dar amor, carinho, cuidado ou perdoar, ceder e ser grato pelos momentos que passamos juntos se torna totalmente incondicional. Faz com que nossa apreciação se resuma ao momento presente. 

Mas esquecemos que todos nós temos uma doença terminal. Que nossos dias são contados. Que, mais cedo ou mais tarde, tudo aquilo que nos identicamos como sendo “eu” irá se desfazer. Nossos relacionamentos, profissão, posses, opiniões, corpo, tudo se mostrará fulgaz. Contra esse fato, a ideia de que “vai dar tudo certo” apenas nos enfraquece. E quando chega a hora de encararmos a verdade nos sentimos sozinhos, ameaçados, vitimizados, negligenciados. Como se o mundo ou Deus estivesse sendo injusto apenas com a gente.

Em uma guerra onde o inimigo é desconhecido e traiçoeiro, as táticas para vencê-lo também se mostram desconhecidas e traiçoeiras. Foge do senso comum, vira o bom senso do avesso. Uma nova perspectiva se mostra necessária. Vencer ou perder não é mais a questão. Talvez seja lembrar que jamais permaneceremos em um único lugar. E, por mais grandiosas ou terríveis que se mostrem, todas as guerras da nossa vida não consegue escapar de sempre ter um começo, meio e fim.